domingo, 10 de maio de 2009

Língua e Poder

Os nacionalistas africanos não ficaram à espera que um vocabulário apropriado nascesse nas línguas maternas dos seus países.

Mia Couto *

Na bela cidade de Durban, falávamos eu e outros escritores africanos da surpresa do modo como, no Zimbabwe, tantos ainda apoiam Robert Mugabe. Havia, no grupo, escritores de vários países de África. Aproveitámos o que melhor há nas conferências literárias: os intervalos. A nossa perplexidade não se limitava ao caso zimbabweano. Como é que povos inteiros, em outras nações, se acomodaram perante dirigentes corruptos e venais. De onde nasce tanta resignação?

Uma das razões dessa aceitação reside na forma como as línguas se relacionam com conceitos políticos da modernidade. Por exemplo, um zimbabweano rural designa os seus líderes nacionais como entidades divinizadas, fora das contingências da História e longe da vontade dos súbditos. O mesmo se passa em quase todas as línguas bantus. A questão pode ser assim formulada: como pensar a democracia numa língua em que não existe a palavra «democracia»? Num idioma em que «Presidente» se diz «Deus»? Nas línguas do Sul de Moçambique, o termo para designar o chefe de Estado é «hossi». Essa mesma palavra designa também as entidades divinas na forma dos espíritos dos antepassados, traduzindo uma sociedade em que não há separação da esfera religiosa.

Parece uma questão de ordem linguística. Não é. Trata-se do modo como se organizam as percepções e as representações que uma sociedade constrói sobre si mesma. A sacralização do poder não pode casar com regimes em que se supõe que os líderes são escolhidos por livre votação. Numa sociedade em que os súbditos se convertem em cidadãos. Esse assunto escapa muitas vezes a quem se especializou em organizar seminários sobre cidadania e modernidade em África. A problemática política é vista, quase sempre, na sua dimensão institucional, exterior à intimidade dos cidadãos. Quando o participante do seminário explicar à sua comunidade o conteúdo dos debates usará a sua língua materna. E sempre que se referir ao Presidente ele fará uso do termo «deus». Como pedir uma atitude de mudança nestas circunstâncias? O que se pode fazer? Será que os falantes destas línguas estão condenados à imobilidade por causa desta inércia linguística?

Na realidade, existem tensões entre a lógica interna de algumas destas línguas e a dinâmica social. Estas tensões não são novas e sempre foram resolvidas a favor da adaptação criativa e da criação de futuro. Já no passado, as culturas africanas (e todas as outras em todos os continentes) tiveram que se moldar e se reajustar perante aquilo que surgia como novidade. Eu mesmo testemunhei o modo veloz como as línguas moçambicanas se municiaram de instrumentos novos, roubando e apropriando-se de termos não próprios. Com o uso generalizado esses termos acabaram indigenizando-se. Sem drama linguístico, sem apoio de academias nem de acordos ortográficos os falantes dessas línguas «pediram» de empréstimo palavras de outros idiomas.

Moçambique é, nesse domínio, um caldeirão dessas mestiçagens. Os nacionalistas africanos não ficaram à espera que um vocabulário apropriado nascesse nas línguas maternas dos seus países. Eles começaram a luta e essa mesma dinâmica contaminou (mesmo com uso de termos e discursos inteiros em português) as restantes línguas locais. Tudo isto nos traz a convicção do seguinte: a capacidade de questionar o presente necessita de língua portadora de futuro. A necessidade de sermos do nosso tempo e do nosso mundo exige línguas abertas ao cosmopolitismo. África – tantas vezes pensada como morando no passado – já está vivendo no futuro no que respeita à condição linguística: quase todos africanos são multilingues. Essa disponibilidade é uma marca de modernidade vital. O destino da nossa espécie é que cada pessoa seja a humanidade toda inteira.

Crónica de Mia Couto, escritor moçambicano, publicada na edição de Abril da revista África 21.

domingo, 5 de abril de 2009

O Estado sempre esteve presente

A matéria abaixo, publicada no Le Monde, sustenta que a reunião do G20 representa o retorno do Estado. Acreditava-se que o Estado havia perdido espaço na vida econômica mundial para o mercado financeiro. O fato é que ele nunca saiu de cena. A idéia do Estado mínimo foi válida para os países pobres e os ditos emergentes, mas não para os países ricos. A crise atual abre espaço para as outras visões de mundo até então tímidas demais.


"LONGA VIDA AO G20!
Le Monde

O G20 passou por seu exame de aprovação. Não era garantido. Entre as economias do norte e das potências emergentes do Sul, não faltavam motivos de conflito, de querela e de disputa: a reunião de Londres, na quinta-feira (2), poderia ter resultado em cacofonia. Mas o interesse comum por uma ação coordenada para tentar frear a pior crise econômica e financeira depois de 1945 prevaleceu.Pode-se dizer que há um pouco de marketing, ou seja, de ostentação, em sua embalagem final. Isso sem dúvida é verdade. Não sabemos muito qual matemática "browniana" o primeiro-ministro britânico usou para adicionar números que não têm nada a ver entre si para anunciar, como um grito de vitória, que o G20 destinará 1,1 trilhão de dólares à retomada econômica. Mas tudo bem se isso for capaz de restaurar um pouco de um elemento que será fundamental para sair da crise: a confiança.O que então aconteceu em Londres? O equivalente ao retorno de um pouco de Estado na cena internacional. Dito de outra forma, o G20 esboçou as novas regras do capitalismo mundial. Vivíamos num momento de globalização financeira totalmente desregulamentada, cujo curso selvagem desembocou na crise atual. A reunião de Londres - que se deveu em grande parte à insistência de Nicolas Sarkozy, o primeiro a tê-la convocado, em setembro de 2008 - introduziu a regulamentação, ou seja, a prudência, nas finanças mundiais. Ela conferiu ao Fundo Monetário Internacional (FMI) um novo papel de fiscalização das práticas econômicas e financeiras dos Estados - caberá a ele acionar o sinal de alarme quando o comportamento de algum dos países ameaçar todo do sistema.E aconteceu mais do que isso. A reunião em Londres destruiu o G8, a cúpula anual americana-nipo-europeia que tinha intenção de administrar parte dos negócios do planeta, uma vez que ela não era nem um pouco representativa do mundo de hoje. O G20 é, ele sim, o espelho justo da repartição de poder econômico nesse começo de século 20: com a ascensão poderosa, cada dia mais evidente, dos gigantes do Sul que incluem a China, a Índia e o Brasil, entre outros.Ainda que exclua a África, o G20 é mais representativo que o Conselho de Segurança da ONU, cuja composição reflete o equilíbrio resultante da 2ª Guerra Mundial. Mas o G20 não é uma instituição. É uma reunião informal, sustentada apenas pela boa vontade de seus participantes. Se quisermos um embrião de governança mundial - imposta pela globalização - é necessário institucionalizar o G20, começando por dar a ele um secretariado permanente."

domingo, 22 de março de 2009

Para ser um ótimo profissional do direito

Comprei a revista Getulio deste mês e me deparei com as seguintes opiniões:

"Um homem da lei - seja advogado ou jurista -, tem de ler literatura, ir ao cinema, ao teatro, pois precisa de uma leitura do mundo que o ajude a interpretar hermeneuticamente o texto jurídico" (João Manual dos Santos Cunha, entrevistado pela Getulio)

"Uma vez um jovem estudante perguntou a um ministro da Suprema Corte Americana o que precisaria fazer para se tornar um grande advogado. O ministro respondeu: 'Primeiro esqueça que você quer ser um grande advogado. Leia, vá ao cinema, teatro, leia os clássicos gregos, assista às melhores peças. Com isso terá uma formação cultural básica essencial que permitirá ser um excelente advogado..." (Nelson Eizikik)

A busca pela especialização desde o berço fez das faculdades espaços de construção da ignorância sem fim. Fico feliz com a mudança de perspectiva que se avizinha pela frente. Talvez fruto da crise econômica. Dinheiro não compra um tipo de saber que só mentes criativas e sensíveis são capazes de desenvolver: cultura.

Um abraço e bom início de semana.
Evandro.

sexta-feira, 20 de março de 2009

Marco Zero

O blog Culturas Jurídicas tem como objetivo discutir o direito dentro de uma perspectiva de abertura à alteridade, fazendo-nos ter consciência que a nossa maneira de pensar os nossos direitos estão ligados a nossas maneiras de pensar o mundo e que há maneiras diferentes de pensar o “jurídico” em nossas diversas sociedades.

Três eixos de reflexão inspiram o conteúdo deste blog: direito comparado, multiculturalismo e pluralismo jurídico. Eles nos convidam a reexaminar as relações que as nossas sociedades mantêm com o direito, não mais em termos de linhas de demarcação e de sistemas jurídicos formais, mas como uma dimensão da vida que se insere na dinâmica global, incorporado na totalidade sociocultural, a partir da qual o direito poderá ser pensado.

O blog Culturas Jurídicas inaugura, portanto, um espaço novo de interação entre visões de mundo a respeito deste fenômeno social chamado “direito”. Logo, não só juristas, mas também antropólogos, filósofos, cientistas políticos, internacionalistas, sociólogos, etc., estão convidados a se unir a nós no desenvolvimento deste debate e a fazerem parte desta revista. Quanto aos leitores, convidamos a se aventurar nesta “desaprendizagem” dos esquemas de pensamento unitários e centralizados sem o qual será particularmente difícil ter um olhar novo sobre o mundo, sobre nossas sociedades e sobre nós mesmos.